terça-feira, 4 de março de 2008

Só a derrota liberta

A vontade era dizer simplesmente "chega", "volte pra sala", "me deixe", mas ela continuava com aquela bucha, esfregando, esfregando, reclamando, reclamando, com razão, quem diria o contrário? Viver na sujeira não é nada - acordar sujo é que é o portal. Depois disso não é necessário mais nada, já se safou, já se bandeou pro lado de lá.
A luta, essa tal batalha da vida, esse hei de vencer, essa carreira profissional, custam muito caro, meu caro. Enquanto meus pés eram esfregados pra que o lôdo saisse, não pensava em nada além de duas coisas: estava bem bêbado, decerto, mas nada tão embriagado assim dentro de minha bebedeira - o dia seguinte, se soubesse, que contasse outra. E que eram as pequenas coisas que acabavam com a gente. As grandes derrotas, as quedas trágicas, os tombos homéricos, esses tinham outra finalidade - a questão era escolher entre a pílula azul e a vermelha. As pequenas coisas, como que atacando Gulliver, eram as que nos amarravam, saqueavam, pisoteavam. Você ali, amarrado por dezenas de cordas rídiculas, de bunda pra cima, exposto ao patético, pronto pra desistir na hora errada. Porque só a derrota liberta.
Você fica pelo caminho, comendo poeira, desconcertado, e daqui a pouco está só, livre de todos eles. Assim, quase sem esforço - só perdendo. Colocar a agulha é que é o foda. Depois, nirvana. Alienação, como se não fosse legítima. A vida são escolhas, então a mais sensata para mim era a carta que ninguém queria, o mico.
Sem trabalho o povo se preocupa e se agita e se mata e chora e brocha e procura reverter a situação a qualquer custo - a tristeza que é um novo trabalho. O elogio, a responsabilidade, o cafezinho, a secretária, a porra do casual day, a festa da firma, a gostosa, o babaca, o prazo, o bom dia... Pro diabo! Nunca me encaixara nisso, como uma peça cega de Lego, que enganou um bocado deles por muito mais tempo que achava possível, e poderia até mais do que isso se eu simplesmente não quisesse largar os pontos ali, com aquela garota fazendo um lava pés num santo da puta que o pariu. Não querer crescer me parece um sentimento mais forte na infância do que o querer ser tal coisa ou tal pessoa. Um medo do caralho desse mundo adulto, desse mecanismo enferrujado, dessa roda viva que não iria fazer a mínima força pra agradar alguém. Aquela ingenuidade perigosa, que te faz correr no fio da navalha, sem saber onde diabos está todo mundo, que sombra é aquela no quarto, quando chega a porra do amanhã.
O tempo passou rápido, estava já naquela fase de reconhecimento, nome no cartão, sobrenome sendo pronunciado aqui e ali, com aquela garota me limpando. Tinha de lidar com tudo isso de alguma maneira, sair de cena não funcionaria, as latas de cerveja não ajudavam. Talvez fosse tarde para mim mandar tudo pros ares, é verdade - mas eu ainda ia fazer uma bagunça fudida por aí. Porque também não ia fazer a felicidade daquele que sempre me derrubou, criou obstáculos, rasgou meu estômago, colocou cacos de vidro na minha garganta: eu mesmo. Ia dar o troco, ah, isso ia. E dormiria mais uma vez com os pés limpos, como todos os filhos da puta de cobertor cobrindo as orelhas. (8/2/2008)

Um comentário:

Daniel disse...

Fale sobre heavey metal em seu blog. Grato.